Friday, April 15, 2005

A Mesma Hora

À mesma hora, o mesmo rosto caído, aquele olhar que um dia quiseste eterno. O mesmo movimento de um jovial cansado, a mesma alma cordial com assentir submisso. O mesmo dia todos os dias. Todos os dias o mesmo dia à mesma hora.
À mesma hora em ti o mesmo suplício, a mesma subida, as árvores incorporando a mesma velhice, o verde resplandecente da erva daninha afirmando que tudo, tudo sem excepção, se transforma. À mesma hora os mesmos animais seguindo as mesmas rotinas de sobrevivência. Os mesmo pássaros ou os mesmos filhos de pássaro servindo-se dos mesmos ninhos, as mesmas ovelhas entretendo-se a devorar a fome, as mesmas lagartixas absorvendo o mesmo sol, os mesmos cães vadiando comida, os mesmos homens e mulheres caminhando a morte.
À mesma hora, todos os dias, a mesma inquietação quando o momento se atrasava um momento. À mesma hora eu passava, enquanto os dias passavam, por ti.
...
A uma mesma hora num outro mesmo lugar és já uma mulher madura. Sempre à mesma hora, o mesmo rosto atento, aquele sorriso que governa o mundo. O movimento agora artificializado pelo carro mais feminino do mercado. Um feminino clássico, fino, lindo, senhorial. Passas por mim a essa mesma hora nesse outro mesmo lugar como eu passava por ti no momento em que o rosto te era caído. A inquietação é, agora, talvez, somente minha.
És talvez casada. Tens talvez um filho, ou dois, ou três. Um filho e duas filhas. Dois casais. Um cão e um gato. Dois cães e um gato. Irra!, dois gatos e um cão. Muitos carros ainda mais femininos, anfíbios, todo-o-terreno. Motas de pista e de água. Barcos movidos por velas. Um pequeno avião. Uma cozinha que não tens o prazer de usar. Muitas cozinhas que não tens o prazer de usar. Uma sala de campo, na praia, na cidade. Um motorista e um jardineiro. Uma esteticista e uma cabeleireira que fecham o estabelecimento pelo prazer de te receber.
Conservas talvez uma ou duas amizades femininas da infância, vedando-se as outras por não se conseguirem suster. Ouves toda a música que há para ouvir. Compras toda a roupa que consegues vestir. Sapatos sapatas, chinelos chinelas, botas botas botas botas! Frequentas todos os bares que consegues suportar.
És talvez divorciada mas continuas a ter o mesmo número de filhos, de gatos e de cães. Continuas a ter o sorriso que manda no mundo.
És talvez solteira mas continuas a ter o mesmo número de filhos, de gatos e de cães.
És, talvez, feliz...
Os momentos de todas as horas de todos os lugares, esses, são, agora, só meus.

1 Bocas:

Anonymous Anonymous Disse...

Très beau et mélancolique.

11:48 AM  

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